quinta-feira, 19 de maio de 2011

Cantor de uma música só

Ele era reconhecido por ser extremamente limitado em questão vocais e musicais, seus primeiros dias presos a um navio das costas distantes também não ajudava.
Longe de ser um ser estranho, ele costumava sorrir ao assobiar sua canção favorita por horas a fio. Ao voltar de seu dever naval, ele se hospedou numa modesta pensão perto das docas onde estava a se preparar para sua nova vida, não ser mais um marinheiro poderia ser considerado uma benção e uma maldição no momento, mas o otimismo o fazia ver aquilo como um novo desafio a ser ultrapassado. Como o apoio monetário duraria pouco era melhor se preparar para ter algo a qual se segurar.
Passeando pelas ruelas caídas de uma cidade infestadas de marujos a procura de diversão, ou como a canção de Phil Ochs, os prazeres do porto (“Pleasures of the Harbor”), aqui apenas cabia sentir a brisa podre de tabaco e olhar o mar cinzento como sorrisos das putas ao redor. Uma placa meio caída de uma pequena espelunca local e abaixo papeis amarelados com os seguinte dizeres: “Procura-se cantor abaritonado e atonal, com preferencia para antigas canções navais”. E pensar que a pouco estaria a bancarrota e pensar que deveria agradecer ao capitão por obrigá-lo a cantar a mesma canção por horas a fio, quem sabe essa pequena punição poderá salvar sua vida. Adentro da faixada suja se encontra um lugar cheio de fotos antigas de navios, algumas tão antigas que nem pode se ver por completo, tão amarelo e riscado, no balcão empoeirado esta um velho obeso e calvo que sorri com um charuto no canto da boca.

- O que deseja rapaz do mar?
- Ex-rapaz do mar meu senhor.
- Não existe nenhum ex-marujo filho... É como ter câncer ou pais negros.

Nesse momento pode-se perceber a mente arcaica do velho, que pigarra o pedaço de charuto que mordeu ao falar de seus pais negros. Estranho figura percebe-se...

- Bem o que posso dizer é apenas que passei meus olhos sobre o aviso que precisa-se de cantor abaritonado e atonal. Bem se é que preciso meu velho, aqui esta seu homem com canções navais e tudo.
- Então até que enfim achei algum cancioneiro dos mares.... Muito bem filho, cante algo para esse velho lobo do mar.

“Grato ao mar”

Sou grato ao mar disse eu ao navio mercante
Com sorriso eu, esporrear ao céu cintilante
Como o largo anel de puta eu me torno confiante

Minha pátria, cuspo eu na bandeira com alegria
Como garfo novo em carne velha de padaria
O capitão geme a quatro fios

Oh querido mar que riquezas você me traz
Eu não sou mais seu capataz, não quero nunca mais voltar a terra por favor


Um silêncio no bar semi-morto, alguns olhares de cantos escuros e meio aplausos de cantos não tão escuros. Na sua interpretação peculiar notou-se algumas mudanças de ritmos e troca de palavras e a sua expressão simples e contemporânea de canção sem igual. Era mais uma dia chuvoso nas docas, caminhando pelas poças, certificando-se que pisará em cada uma delas e se molhando o máximo possível. A noite chegando, o entardecer vermelho do porto lhe lembra pequenos poemas do mar.

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